O Animal Cordial: Quando as máscaras de civilidade caem
Fim
do expediente em um restaurante de classe média em São Paulo. A equipe da cozinha
precisa ir embora logo para não perder o trem. A garçonete deseja ser notada
pelo patrão. Os clientes querem ser bem atendidos. O dono do estabelecimento apenas
sorri e tenta atender às exigências de todos. E então uma dupla de assaltantes
invade o local e abala o frágil equilíbrio do ambiente. Sob tensão, as máscaras
de civilidade dos indivíduos caem e revelam a verdadeira face desses animais
domesticados.
Personagens
diversificados forçados a dividir um espaço pequeno, tendo que superar suas
diferenças para sobreviver. Um thriller típico. Pelo menos é o que parece à
primeira vista. Mas “O animal cordial”, primeiro longa-metragem da diretora
Gabriela Amaral Almeida, que já havia explorado o suspense no curta “Uma primavera”, de 2011, e a solidão e o incômodo das relações sociais no premiado
“A mão que afaga”, de 2012, vai além. No novo filme, o decadente restaurante,
que o proprietário tem a ilusão de ser sofisticado, é um microcosmo da
sociedade brasileira urbana e, nesse cenário, lutas de classe e questões de
gênero são discutidas de forma alegórica. Os conflitos internos de cada um vão
sendo externalizados sem pudores, com crueza, num crescendo que leva, inevitavelmente,
ao terror.
Com
forte influência estética de filmes do gênero giallo, confirmada pela
diretora na coletiva de imprensa e em algumas entrevistas anteriores, o filme
acerta em cheio ao humanizar os personagens, mostrando-os como seres ora cordiais,
ora selvagens. Nem mesmo ao “vilão” Inácio, dono do restaurante vivido por
Murilo Benício, é possível odiar plenamente, apesar da forma como ele trata os
funcionários, pois notamos que é um homem sob pressão que sente que está
perdendo seu poder e seus privilégios e não sabe como agir nesse novo papel que
lhe é atribuído.
Sua
parceira nessa viagem ao inferno é a garçonete Sara (Luciana Paes), que começa
a história com uma paixonite pelo patrão e pronta para fazer qualquer coisa por
ele, mas que, no desenrolar da trama, vai ganhando confiança em si mesma e,
percebendo que a imagem que fazia dele era bem melhor que a realidade, decide
se impor e fazer o que realmente tem vontade, subvertendo a hierarquia e
ganhando protagonismo na própria vida.
Além
da dupla de degenerados que vive uma paixão antropofágica perturbadora, outro
elemento fundamental para manter a tensão da história é o chef Djair
(Irandhir Santos), que encarna a pedra no sapato de Inácio ao não se submeter a
ele docilmente e não se manter invisível e sem voz na cozinha, ao fazer rachar
o verniz da polidez e deixar vazar o preconceito contra sua figura que destoa
daquele ambiente pretensamente requintado com seus cabelos longos, sobrancelhas
bem-feitas e sotaque nordestino. Ele é a representação do mal-estar causado
pelo proletariado que se infiltra nos salões dos endinheirados esnobes, o lixo
que deveria ser retirado pela porta dos fundos, mas cujo fedor se insinua por
entre as mesas cobertas por toalhas de linho.
“O
animal cordial” é um thriller com problematizações sociais nas entrelinhas. Mas
também tem romance. E sexo (numa cena ousada que provavelmente foi o que levou
o filme a receber classificação indicativa de 18 anos). E sangue. Muito sangue.
E uma protagonista que não deve nada às final girls dos melhores slashers,
mas com uma motivação que não se resume à vingança pura e simples: ela está numa
jornada de autoconhecimento e libertação. Por mais filmes que mesclem tão
habilmente os gêneros quanto este.
Nota:
4 estiletes
Estreia:
9 de agosto
Num baile à fantasia em que cada convidado se vestisse do que exata e verdadeiramente é, certamente ninguém reconheceria ninguém.
ResponderExcluirGK